O governo JK (1956-60)
representava politicamente um avanço com relação à democracia. E isso fica
ainda mais claro se concebermos aquele momento histórico como um período
conturbado no Brasil e no restante do mundo. Se não vejamos: aqui no Brasil
passara-se menos de dois anos do suicídio de Getúlio Vargas; havia uma grande
disputa entre setores nacionalista e setores mais flexíveis; os militares
encontravam-se irrequietos na caserna. Já em relação ao mundo, os problemas não
eram menores: rearticulação de forças no pós-guerra; Guerra Fria entre as duas maiores
potências do mundo, consubstanciada nos EUA e URSS; enfrentamento entre estas
potências, de forma indireta, através de conflitos localizados como na Guerra
da Coréia e Revolução Cubana.
O suicídio de Getúlio, que
causara tanta comoção na população brasileira, deixava um espólio cruel para o
próximo presidente eleito: ter o mesmo carisma do Velho Caudilho ou “pai dos
pobres”.
É nessa seara que o Governo
JK irá se desenrolar. No âmbito interno, consegue fazer malabarismo entre os
setores nacionalistas e internacionalistas (ou menos nacionalistas). Para
tanto, evoca que a relação com as economias centrais deve ser no sentido de
“inferioridade” (entre país desenvolvido e subdesenvolvido) e não de
exploração. A meu ver, com essa “sacada”, JK tenta anular os discursos
ideoligizantes dos nacionalistas e esquerdistas e, de quebra, afirmar o seu
discurso desenvolvimentista; no Congresso, exerce com precaução e moderação a
prerrogativa do veto presidencial, angariando-se, assim, forte simpatia por
parte dos políticos.
Os militares na história
brasileira, principalmente a partir da República, sempre se julgaram como os
“salvadores da pátria”. Nos anos 20, há o Movimento Tenentista que tinha como
aspiração a moralização da vida pública brasileira, ou seja, acabar com a
política exercida a partir das oligarquias, principalmente de São Paulo e de
Minas Gerais na famosa Política do Café com Leite. Apesar da “boa intenção”
desse Movimento, o mesmo fora derrotado. Mas, deixou muita influência tal como:
“... a realização histórica de orientação genérica assumida pelo Movimento
Tenentista como o reformismo e o nacionalismo. Portanto, na conjuntura
analisada, o comportamento militar é referido ao sistema, como comportamento
modernizante, mas os cursos sociais posteriores alteram as características
deste comportamento".
“Na medida, portanto, que os
cursos do sistema aumentaram a significação política dos grupos de classe
baixa, os militares, de um papel modernizante, tendem a assumir o papel de
árbitros e finalmente o de defensor conservador da ordem social.”
A partir do fim do Estado
Novo em 1945, há “... o estabelecimento de um novo modelo de sistema político,
(a democracia que coincide com um comportamento militar mais marcadamente
arbitral). É neste período que se cristalizam dois grandes grupos políticos
militares, que entrarão em conflito em cada crise do sistema. De um lado, o
grupo nacionalista, que se estrutura em torno da defesa do monopólio estatal do
petróleo... De outro lado, o grupo da ESG (Escola Superior de Guerra), que pode
também ser caracterizado como o grupo dos conspiradores históricos.”
Segundo Fernando Pedreira,
os anos de 1954, 1955 e 1961 caracterizam bem o posicionamento dos militares
enquanto árbitro da sociedade brasileira.
“O governo JK caracterizado
pelo desenvolvimentismo como estratégia psicossocial de mobilização e pela
forte liderança do Mal. Lott no plano militar, só apresenta duas crises
militares, na área da Aeronáutica, ambas de pequena envergadura. A crise de
Aragarças representa a radicalização de perspectivas do grupo militar
anti-populista.”
No plano internacional, JK
tenta atrair o apoio dos EUA a sua política. Para tanto e aproveitando-se do
clima de Guerra Fria, JK coloca-se como um anticomunista. Assim, poderia obter
o apoio dos EUA.
O Governo JK, do ponto de
vista econômico em seu Plano de Metas, quebrou o paradigma do nacionalismo
“caboclo”, ou seja, a melhor maneira de combater o nacionalismo tanto de
direita quanto de esquerda era a prosperidade através do desenvolvimentismo.
A meu ver, os “Anos
Dourados”, no período em que JK era presidente, foram uma conjugação de
diversos fatores, entre os quais, a criação de mercado para diversas
indústrias, a facilitação do fornecimento de matérias-primas bem como de bens
de capitais. O limite entre a habilidade de JK para governar e os fatores
conjunturais daquele momento é tarefa que requer um estudo bem mais
aprofundado. Em outras palavras, qual dos dois aspectos foi preponderante? O
desenvolvimento só existiu por causa da conjugação dos dois fatores? A relação
causal determinante naquele período não é factível nesta pequena exposição ora
realizada.
Miriam Limoeiro acerta em
cheio quando coloca que o “desenvolvimentismo é a ideologia que propõe ‘mudar
dentro da ordem para garantir a ordem’.”
Para Marly Rodrigues, havia
uma contradição entre a internacionalização da economia e o nacionalismo
populista no qual JK estava inserido.
Do ponto de vista social, o
governo JK, apesar da forte propaganda em que havia prosperidade para todos,
não foi bem sucedido. Se não vejamos: “As classes trabalhadoras - as quais
também se pedira que se comportassem como ‘soldados do desenvolvimento’ -
participavam desigualmente do clima de prosperidade. Embora os salários
aumentassem em termos absolutos, a sua participação na expansão, em termos
relativos, era cada vez menor. De 1955 a 1959, enquanto os lucros industriais
aumentavam 76% e a produtividade 35%, o salário mínimo eleva-se apenas 15%.”
E Marly Rodrigues afirma que
apesar de o pais ter entrado na fase de produção e consumo de bens duráveis,
não houve “... uma transformação efetiva das relações políticas entre os diversos
setores de classe e entre as classes.”
Mais a frente, Marly coloca
que estava na própria gênese do desenvolvimentismo o descompasso entre o
crescimento industrial e a pobreza reinante em vastas regiões do país,
sobretudo no campo.
Mas a pobreza reinante no
país (segundo os ideólogos do desenvolvimento) era apenas um detalhe do modelo agroexportador.
Bastava a industrialização do país para que a pobreza acabasse. Percebe-se,
nesta colocação, que a industrialização era vista como uma panaceia.
O homem JK, se é que se pode
falar assim, era um mau administrador de seus próprios bens como ele próprio
coloca em suas memórias.
As anotações do diário de JK
“... mostram um Presidente que na vida civil, vive as voltas com negócios
desastrados. O Banco Denasa, criado por ele e os genros, quase foi à bancarrota
por uma administração desastrosa. JK também era sócio de uma empresa de
construção civil em Portugal, que acabou sendo confiscada pela Revolução dos
Cravos. Comprou uma fazenda onde pretendia plantar batata e criar gado, mas só
conseguiu mais prejuízo. (...) Em 20 de dezembro de 1974, JK escreveu: ‘Tenho
sido explorado por todo mundo’.” Era também um mulherengo conforme atesta uma
reportagem numa revista semanal sobre o seu passado: Maria Lúcia Pedroso “... é
uma pérola oculta na História do Brasil. Durante quase dezoito anos, ela teve
um romance secreto com Juscelino Kubitschek.” Mas também “era do tipo
excelente” conforme afirmação do entrevistado Otto. “Não era corrupto”, conforme
colocação do entrevistado Walmy.
Como todo ser humano, JK
tinha o seu lado considerado bom e o lado considerado ruim. É claro que esses
julgamentos de valor dependem do contexto e dos valores em que está inserido o
eventual analista.
Uma coisa têm sido constante
quando se fala de JK: a sua pessoa é sempre preservada. Nesse particular, há
até a mitificação do homem JK.
A impressão que fica do
homem JK, a partir das referências à sua pessoa, é que o mesmo estava “além do
bem e do mal”.
O político JK, a meu ver, como
já coloquei, conseguiu captar o que os “dois mundos” (o mundo dos pobres onde
crescera e o mundo das elites onde adentrara, principalmente após o seu
casamento) tinham de melhor. Do “mundo” dos pobres captou a simplicidade, o “pegar
nas mãos”, a espontaneidade. Do “mundo” das elites captou a sagacidade a
articulação nos bastidores, a ilusão de que tudo é possível na política.
A idiossincrasia de um jovem
que crescera em meio as maiores dificuldades sócio/econômico/financeira fica
bem claro quando numa das passagens de sua autobiografia ele coloca que a
pobreza em que vivia era circunstancial devido à morte precoce de seu pai e não
“natural”, já que, no mínimo, era descendente próximo de europeu (ex-Tchecoslováquia).
Dessa forma, o jovem JK indignava-se com a sua situação para que conseguisse
forças para superá-la.
Uma coisa é certa, o
político JK é engendrado a partir de um imbricamento de situações que, em
muito, lembra o estilo frugal dos Puritanos quando de suas chegadas ao “Novo
Mundo” (EUA), conforme descrito num trabalho de Weber. Quando garoto, estudara em colégio de padres. Aprendera francês
com uma senhora francesa que morava em Diamantina. Tivera uma educação à
espartana de sua mãe. Gostava de trabalhar, apesar de ser apenas um garoto.
Como se vê, tinha um estilo de vida voltado para uma forte disciplina no
dia-a-dia. Portanto, JK teve uma boa base para se tornar um grande político.
A partir daí, a questão era
saber aproveitar as chances que poderiam lhe aparecer. É isso, talvez, que
diferencie o político JK dos demais. Naquele momento em que havia uma guerra (a
Revolução Constitucionalista de 1932), JK não se acovardou: foi e enfrentou as
adversidades; conseguiu mostrar o seu valor enquanto um jovem médico; teve a
sorte de ter tido o reconhecimento pelo seu trabalho por pessoas que viriam a
ocupar cargos de destaque na administração do Estado.
Edgard Barros foi feliz
quando colocou que JK tinha um estilo sofisticado em que conciliava generosidade,
sutilidade, elitismo e oportunismo.
O político JK, certamente,
perpassou por todos esses elementos citados por Edgard.
Da sua formação religiosa,
certamente, saiu o seu profundo anticomunismo. Da sua educação rigorosa,
certamente, saiu a sua disciplina tanto no poder quanto fora do poder. Da sua
vida simples no interior, certamente, saiu a sua incrível capacidade de ser
popular. Da sua indignação diante das dificuldades da vida, certamente saiu o
político que queria transformar um país pobre em país rico.
A meu ver, Otto também foi
muito feliz quando coloca na entrevista que devido à infância pobre em que JK
vivera (o que, certamente, o levava a ter complexo de inferioridade), nasceu o
político e administrador megalomaníaco.
Nem tudo são flores na vida
política de JK. Afinal a vida política é feita por homens políticos com as suas
virtudes e seus defeitos. E segundo o filósofo espanhol Ortega y Gasset
(analisando o estadista em contraposição ao pusilânime), “não se espere que o
estadista seja um homem virtuoso”. Os estadistas são homens de ação,
basicamente inescrupulosos - no sentido de jamais permitirem que uma dúvida
escrupulosa interrompa a ação. (...) Ele trapaceia, mente, alia-se ao diabo.
Só é absolutamente íntegro
quando entra em jogo o Estado.
A grande acusação que se
fazia a Napoleão é que ele era megalomaníaco. Claro que era. ... Não há nenhuma
pessoa que se dispondo a mudar um Estado, não seja um megalomaníaco.
Vai além. Em geral, os
estadistas têm uma adolescência extremamente conturbada e polêmica. Todo
estadista tem um fogo interno, um vulcão que só se materializa na maturidade,
quando ele logra conquistar o poder. ... O estadista incomoda. É dotado de
grandes virtudes - e de enormes defeitos.”
Como se vê, o político JK
fez enormes obras como a Pampulha, grandes rodovias, Brasília... e permitiu
enormes corrupções. Aliou-se a Benedito Valadares, uma figura desprezível na
política mineira conforme as citações em suas memórias, para projetar-se
politicamente. Para conseguir a sua ascensão política, calou-se diante do
Estado autoritário getulista em 1937, quando perdera o mandato de deputado
federal, mesmo dizendo-se ser um democrata convicto. Tornou-se “cacique”
político em Diamantina a despeito de sua convicção democrática.
Finalizando, o político JK
não pode ser visto por uma pessoa que se pretenda analista como um homem que
esteja acima do bem e do mal (excetuando-se a mitificação feita pelo povo na
análise do homem JK enquanto “simplesmente” homem, como já coloquei acima). O
seu projeto de nação tinha, evidentemente, enormes virtudes, mas também enormes
defeitos, ou seja, dependendo da ótica política e teórica em que o analista
esteja inserido.
E Ortega y Gasset foi,
também, feliz quando definiu o estadista dessa maneira: “Tudo nele é enorme,
exagerado, ameaçador. Incomoda a diferença de estatura. Incomoda a perspectiva
de sucesso - já que a sua ânsia de poder sempre é ameaçadora. Incomoda a
arrogância, a falta de limites.
Só que estadistas forjam nações.”
Luiz Fernando