quinta-feira, 12 de setembro de 2013

JOHN LOCKE E O CLIENTELISMO BRASILEIRO



A partir do Contrato Social, o liberalismo político lockeano assenta-se no Pacto do Consentimento. Como John Locke concebe esse aspecto? Para ele, os homens viviam em total liberdade e igualdade no Estado de Natureza, ou seja, no Jusnaturalismo. No entanto, o Estado de Natureza era caracterizado como um estágio pré-social e pré-político. Nesse estágio, apesar de suas qualidades, havia a necessidade de segurança dos indivíduos, já que poderiam surgir desavenças a respeito do direito de propriedade relativa aos bens genéricos como a vida, a liberdade, ou aos bens específicos como a posse de bens móveis. A esse direito de propriedade, no sentido amplo, Locke denomina como direitos naturais do ser humano.

É a partir dos possíveis problemas que poderiam advir que Locke concebe a união dos indivíduos livremente em torno de um projeto comum: um Pacto de Consentimento que levará ao Contrato Social.

Após a materialização do Contrato Social, Locke coloca que o próximo passo será a forma de governo. Para tanto, seguindo a visão de mundo liberal do autor, os indivíduos devem escolher o princípio da maioria com, necessariamente, respeito à minoria. A partir de então, estaria criado a sociedade política.

À relação entre governante/governado, Locke é peremptório: não existe! O seu argumento é que na sociedade política, através do Contrato Social, o que existe é uma relação de homens igualmente livres. Numa palavra, o Contrato Social não criaria nenhum direito novo, ou seja, fundamentar-se-ia no direito que já existia no Estado de Natureza.

Uma possível comparação dos ideais lockeano de Contrato Social e Relação Governante/Governado com a realidade política do Brasil atual devem ser situadas, primeiramente, a partir do contexto da formação do Estado Brasileiro. Afinal, o desenvolvimento do liberalismo lockeano até os nossos dias, evidentemente, partiu de pressupostos do Pacto de Consentimento, Princípio da maioria, que não existiram na formação do Estado Brasileiro.

A colonização do Brasil se deu a partir do absolutismo reinante na Península Ibérica. Dessa forma, a propriedade, na concepção de Locke, não foi conquistada pelos indivíduos que apresentassem características, como força física, suficiente para explorá-las, mas por doação da Coroa Portuguesa àqueles que lhes convinha.

A formação da sociedade política brasileira não foi por Pacto de Consentimento, nos termos de Locke, mas sim por um "Pacto de Lealdade" à Coroa.

Dadas as brevíssimas colocações sobre o “Pacto de Lealdade” que, a meu ver, tornar-se-ão o suporte do "desenvolvimento" político do Brasil, farei, a seguir, uma analogia dos referidos aspectos do pensamento lockeano com a realidade brasileira atual.

O aparecimento da moeda, segundo Locke, tornaria a propriedade privada ilimitada, ao contrário de quando ela era limitada e conquistada somente pela capacidade de trabalho. No Brasil atual, essa característica ilimitada da propriedade é o que transpassa na sociedade. Para ilustrar essa colocação, citarei o relatório do IBGE/2011, onde a distância entre os ricos e os pobres brasileiros ainda é muito grande: da riqueza nacional, os 20% mais ricos detêm 57,7% e os 40% mais pobres apenas 11%. Outro dado ilustrativo é o índice de mais de 9% de analfabetismo ainda existente no país.

A realidade política do Brasil atual está inserida num panorama em total contradição com o Contrato Social Lockeano. Para tanto, o cientista político, Wanderley Guilherme dos Santos, coloca que temos um grande número de agências como instituições políticas. Assim, nesse quesito, nos aproximamos das grandes poliarquias modernas como as democracias européias. Entretanto, apesar de haver um grande número de filiados a essas agências, não há o mecanismo de cidadania, ou seja, elas só existem no papel. Wanderley coloca que o que existe de fato, e generalizado, é uma luta de todos contra todos, no que ele chama de hobbesianismo social. Em outras palavras, há apenas "manchas" de poliarquia na sociedade, como os sindicatos, os partidos políticos, os conselhos de classes, os conselhos populares, nas chamadas organizações societárias. É a poliarquia envolta pelo hobbesianismo social.

Ora, o Contrato Social, concebido por Locke, previa uma sociedade de cidadãos, Nesse sentido, a criação da sociedade política teria que responder aos interesses da maioria e não de uma minoria, como acontece no Brasil. Locke é incisivo: a criação da sociedade política pelo do Contrato Social é apenas para complementar, através da segurança, da justiça, a situação de liberdade e igualdade que os indivíduos vivenciavam no Estado de Natureza. No Brasil, a sociedade política, nos termos de Wanderley, é apenas, no sentido geral, uma sociedade do "faz-de-conta". O que existe mesmo é um desregramento social arraigado e, nesse sentido, diametralmente oposto à tese de Locke.

No que concerne à relação Governante/Governado, o que existe de fato no Brasil atual é uma sociedade permeada pela desigualdade. Portanto, a relação de igual preconizada por Locke, através da criação da Sociedade Política, não existe em nosso país. O que sobra é uma sociedade onde o público e o privado é manipulado ao bel-prazer da elite política até os nossos dias. Para ilustrar o poder da elite, basta citar que na história do Estado de Minas Gerais, pouco mais de uma dezena de famílias dominam a cena política através da governadoria. E na sociedade política mineira, até a década de 70, o que predominava era o setor agrário e a relação clientelística com o poder.

Ora, se há mistura entre o público e o privado; se somente uma minoria usufrui dessa "nefasta" mistura; se o indivíduo é um cliente político, logo ele é um dependente de favores do Estado e, consequentemente, não é um cidadão igual na relação com os governantes. Então, efetivamente, não há liberalismo e, consequentemente, não há capitalismo baseado na iniciativa privada. Por último, mas não menos importante, não há o Contrato Social. O que há, nos termos de Locke, é uma relação governante/governado.





Luiz Fernando da Silva

sábado, 7 de setembro de 2013

A PAIXÃO AMOROSA

“Aquele que ama é um ser mais divino que o amado, pois está possuído por um deus. Concluo, portanto, que Eros é o mais antigo, o mais honorável e o mais capaz entre os deuses de propiciar a virtude e a felicidade dos homens, seja durante a vida, seja após a morte” (Platão, 2001, p.35).
Desde os tempos mais remotos, o amor, enquanto experiência inarredável da vida humana, configura-se como um tema de grande relevância para as reflexões teóricas e literárias. Dessa forma, o fragmento acima é demonstrativo da importância que grandes pensadores da nossa civilização deram a ele. Desde os gregos antigos até a modernidade, os homens buscam compreender esse tão intrigante fenômeno. Assim, por exemplo, diz Nietzsche: “a história do amor é o único e verdadeiro interesse comum a todos os círculos (...). Toda a produção de nossos poetas e pensadores, da maior à mais insignificante, é mais que caracterizada pela excessiva importância da história de amor que nela surge como história principal”. Dramaturgos e escritores também elaboraram tramas amorosas que se imortalizaram. Como ilustração, tomemos a Romeu e Julieta de Shaskespeare, e O Dom Casmurro de Machado de Assis. Ambas obras literárias, escritas em épocas diversas, mas que se notabilizaram pela maestria com a qual exploram os dramas que podem advir sobre uma relação amorosa.
Um dos aspectos que incidem na problemática do amor é de natureza terminológica. Comumente há o emparelhamento entre os conceitos amor e paixão. Ambos, no mais das vezes, são empregados como sinônimos. Todavia, essa equiparação pode não ser legítima sob alguns aspectos, principalmente em relação à prática, na forma como se dão as relações afetivas na vida cotidiana. Nesse sentido, é possível verificar, dentre outras possibilidades, duas configurações relacionais quando o que está em jogo é afeto e sexo. Dito de outra forma, quando a finalidade de uma relação entre duas pessoas é sexo mais afeto, é possível se distinguir dois tipos de ligação: paixão e amor. O primeiro é marcado por uma forte atração de um pelo outro. Há um desejo quase que irresistível de ficar ao lado da pessoa. Os pensamentos e lembranças envolvendo o outro são recorrentes, o tempo todo se pensa na outra pessoa. Essa situação chega a assumir caráter obsessivo. A vida muda complemente. É como se quase toda a energia do indivíduo fosse investida na pessoa amada. Quando há o encontro entre ambos, sensações intensas são experimentadas: o coração dispara, o estômago recebe uma lufada violenta e prazerosamente congelante, as pernas ficam bambas e os pensamentos viajam rapidamente. A atração física é intensa.
Mas o tempo passa... Com ele tendem a passar também esses arroubos emocionais.  Assim, um segundo tipo de ligação pode se instalar. Nele, o interesse sexual, antes tão arrebatador, tende a diminuir e a outra pessoa já não tem a mesma onipresença. No entanto, nessa fase, pode surgir uma relação de maior estabilidade, pautada por afinidades e expectativas mais realistas, diálogo e admiração mútua. Ao primeiro momento pode se dar o nome de PAIXÃO, ao segundo de AMOR.
Vale destacar que não é fácil encontrar por aí a segunda situação. O que ocorre com frequência é a separação ou distanciamento quando a paixão se acaba. Também é comum as pessoas relatarem insatisfação, pesar e amargura por conviverem com alguém pelo qual já não se sente apaixonado. Em alguns casos, isso pode se tornar um sofrimento excruciante. Em uma relação em que o desejo sexual e a troca de afetos positivos se extinguiram, a agressividade, a raiva, a intolerância e a mágoa podem facilmente tomar lugar e passar a serem os referencias das trocas entre o casal. Todavia, essa diferenciação entre o amor e a paixão não é consensual. Muitos não veem diferença entre eles, outros afirmam tratar-se de fenômenos bem distintos.
Controvérsias à parte, misturemos alhos com bugalhos e demos aqui o nome de paixão amorosa a este tão famigerado fenômeno. A paixão amorosa, como já foi apontado acima, é um dos estados mais intensos experimentados pelo ser humano. Devido à intensidade das emoções que a ela estão associadas, um indivíduo apaixonado pode ter sua vida modificada radicalmente. As relações sociais com amigos e familiares, o trabalho e outras atividades tidas antes como prazerosas pela pessoa, num estado de apaixonamento, podem perder muito de sua importância ou até mesmo, em casos mais drásticos, perder totalmente o significado. A pessoa amada passa a ser o centro do universo e tudo passa a girar em torno dela. Não há defeitos no objeto da paixão amorosa. Tudo é belo e maravilhoso. A paixão dá asas ao coração e aos pensamentos. A pessoa passa a viver como se, repentinamente, tivesse sido possuída por uma força incontrolável ou por um deus, nas palavras de Platão. A outra pessoa lhe dá segurança e sua presença é uma fonte de bem-estar. Por isso, o desejo de fusão com a pessoa amada é muito comum. Toda essa experiência é marcada por sensações de forte prazer. Mas, nem tudo são flores.
A paixão amorosa, quase que fatalmente, está relacionada a fortes sofrimentos e pode mesmo descambar patologias e tragédias. No próximo texto deste autor neste espaço, iremos tratar dos desdobramentos psicopatológicos da paixão amorosa.

João Paulo Braga Floriano

domingo, 1 de setembro de 2013

OS MÉDICOS, OS RINCÕES E A JORNALISTA


Uma grande disputa na seara da medicina assola o país: de um lado, o governo central decretando uma política por “mais médicos”; do outro, a classe médica do país se rebelando contra a política de atração de profissionais vindos do exterior. 

Os médicos nacionais gozam de muito prestígio e têm muito poder, mas nem sempre foi assim. O Brasil, até o século XIX, era dotado de muitas formas de curandeirismo. A medicina popular ia desde os pajés, passando pelos curandeiros, religiões africanas, até a Jesuítica. Já a medicina universitária tal qual conhecemos hoje, era algo muito distante daquela realidade. Durante os três primeiros séculos de Brasil, havia um número ínfimo de formados na medicina universitária. E, mesmo assim, não eram brasileiros, eram médicos vindos de Portugal. Segundo o filósofo Roberto Machado, eram no máximo dez profissionais. Portanto, o que estava presente, de forma hegemônica, era a medicina popular.

A antropóloga Paula Montero, no livro “da doença à desordem, a magia da Umbanda”, conta que, durante os dois primeiros séculos de Brasil, eram poucos os chamados cirurgiões-barbeiros e aprendizes de boticários a desembarcarem no Brasil. E eram, também, pessoas de origem humildes, degredados e aventureiros, sendo tratados pelos Senhores de Engenhos como meros serviçais. Para Paula, “o número reduzido de profissionais, o baixo prestígio social da profissão que facilitava seu acesso a negros e mulatos, a falta de recursos técnicos e sua extrema simplicidade foram fatores que fizeram da medicina ibérica uma terapêutica muitas vezes preterida, com relação à medicina popular”.

Com a vida da família Real para o Brasil, houve a implantação de faculdades de medicina. Dessa forma, o século XIX marca para a medicina popular um futuro menos nobre. A medicina universitária decreta, a partir de então, uma verdadeira “guerra santa” contra a medicina popular. A terapêutica popular passa, então, a ser taxada de charlatanismo e caso de polícia. 

Ainda segundo Paula, a medicina universitária vai se impor realmente no Brasil somente a partir do final do século XIX e início do século XX, com a criação do Instituto Butantã, o de bacteriologia e pelos resultados no diagnóstico de patologias tropicais. O saneamento e o tratamento das endemias realizados no Rio de Janeiro, no início do século XX, pelos sanitaristas Oswaldo Cruz e Vital Brasil, serão um marco na legitimação da terapêutica universitária como hegemônica.

A partir de então, o status da medicina universitária voa para cima tal qual um foguete. Isto é um ponto quase inquestionável. Mas, será que favoreceu toda a sociedade? É aí que mora a questão maior: a ciência médica aportou-se nos pontos urbanizados e de grande concentração populacional. Os rincões menos povoados ficaram a ver navios. Mas por que isso se sucedeu?

Como secretário de saúde numa pequena cidade do interior de Minas, eu tinha dificuldades em contratar médicos, mesmo com altos salários, e ficava a me perguntar: por que os médicos resistem tanto a vir para uma pequena cidade? E não obtinha respostas plausíveis. Anos mais tarde, o famoso médico Adib Jatene, num programa de televisão, respondeu a esta questão de forma muito clara. Para ele, os médicos só querem trabalhar onde há grandes centros de diagnósticos. Daí, a dificuldade em enfrentar pequenas cidades, que são desprovidas desses centros. Numa palavra, o sujeito forma-se médico, mas não tem formação suficiente para medicar sem auxílio daqueles diagnósticos feitos em laboratórios e outros centros de saúde.

A partir daquela entrevista do médico Jatene, percebi, então, o motivo da predileção dos médicos em ficarem em grandes centros urbanos, mesmo tendo uma competição maior na profissão com seus pares. A propósito, um deputado do Pará, em discurso recente na Câmara dos Deputados, disse que há prefeitos lá no Estado dele que oferecem 20 mil reais por mês ao médico e ele diz não; oferecem 30 mil reais e ele diz não... Para pensar em ir para lá, há que se oferecer 40 mil reais mensais ou até mais do que isso. Uma situação totalmente complicada para o governante, já que em muitos desses municípios, a principal fonte de arrecadação financeira é o Fundo de Participação dos Municípios – FPM.

Quando a Presidente Dilma, no auge das manifestações de rua, lançou o programa “Mais médicos”, houve uma gritaria geral no reino das ciências médicas. Tarefa ousada do governo central em enfrentar os “homens de branco”. Um governante não pode só fingir que governa, há que ter em mente o bem-estar da população e enfrentar certos corporativismos nefastos. Assim, a roseira dos médicos começou a balançar. Como represália, os médicos fizeram até passeatas. Os Conselhos Regionais de Medicina – CRMs, que são muito vagarosos na punição de médicos por acometimento de erros, alardearam, rapidamente, que serão severos com os médicos estrangeiros. Nessa disputa, está bem desenhado o caráter dos médicos. Querem o poder pelo poder. O juramento de Hipócrates é apenas um detalhe na vida desses senhores.

Falar mal de médicos em público é coisa rara. Quase todo mundo tem medo de médico. Eles detêm o discurso de autoridade na área da saúde. São os que atestam a vida e a morte. Assim, o médico não pensa que é Deus... Ele tem certeza disso. Essa visão de mundo do médico é aprovada por uma população que os trata como doutores, sem eles terem feito doutorado e ,também, os bajula excessivamente.

A vinda de médicos estrangeiros não garante perda de status para os médicos brasileiros. Contudo, esse fator pode deixá-los com menos força de barganha no sistema de saúde do país. E, certamente, é isso que eles temem. Mas, pode ser uma concorrência benéfica para a visão de mundo dos médicos brasileiros. Noutras palavras, os médicos formados em Cuba saem da faculdade para enfrentar uma realidade desprovida da parafernália eletrônica de diagnósticos que existem aqui no Brasil. Talvez, o CRM e o Ministério da Educação atentem mais para o fato da dependência eletrônica relativa aos diagnósticos na formação do médico aqui em nosso país.

Nesse embate entre governo e médicos, apareceu uma infeliz, que se denomina jornalista lá no Rio Grande do Norte, comparando as médicas vindas de Cuba a empregadas domésticas. Se ela tivesse seguido a cartilha jornalística e lido sobre a história da medicina, pelo menos, não cometeria em rede social tamanha barbaridade. Embora ela tenha pedido desculpas posteriormente, ficou a marca de uma sociedade que concebe o médico como alto, branco e aristocrático. Mas esse fator é mesmo realidade no Brasil. Nas piores faculdades de medicina, o valor da mensalidade é sempre um acinte à maioria do povo brasileiro. Daí, a seleção das pessoas aristocráticas para serem médicas.

Para um país de dimensão continental, há necessidade de uma medicina mais próxima do cidadão, ainda que seja nos confins da Amazônia. Se os médicos brasileiros resistem a enfrentar essa questão; se há possibilidade de trazer médicos de outros países dispostos a se embrenharem sertão afora; o caminho da equidade na saúde estará mais no horizonte da população menos favorecida pela terapêutica acadêmica. Avante!

Luiz Fernando da Silva