domingo, 1 de setembro de 2013

OS MÉDICOS, OS RINCÕES E A JORNALISTA


Uma grande disputa na seara da medicina assola o país: de um lado, o governo central decretando uma política por “mais médicos”; do outro, a classe médica do país se rebelando contra a política de atração de profissionais vindos do exterior. 

Os médicos nacionais gozam de muito prestígio e têm muito poder, mas nem sempre foi assim. O Brasil, até o século XIX, era dotado de muitas formas de curandeirismo. A medicina popular ia desde os pajés, passando pelos curandeiros, religiões africanas, até a Jesuítica. Já a medicina universitária tal qual conhecemos hoje, era algo muito distante daquela realidade. Durante os três primeiros séculos de Brasil, havia um número ínfimo de formados na medicina universitária. E, mesmo assim, não eram brasileiros, eram médicos vindos de Portugal. Segundo o filósofo Roberto Machado, eram no máximo dez profissionais. Portanto, o que estava presente, de forma hegemônica, era a medicina popular.

A antropóloga Paula Montero, no livro “da doença à desordem, a magia da Umbanda”, conta que, durante os dois primeiros séculos de Brasil, eram poucos os chamados cirurgiões-barbeiros e aprendizes de boticários a desembarcarem no Brasil. E eram, também, pessoas de origem humildes, degredados e aventureiros, sendo tratados pelos Senhores de Engenhos como meros serviçais. Para Paula, “o número reduzido de profissionais, o baixo prestígio social da profissão que facilitava seu acesso a negros e mulatos, a falta de recursos técnicos e sua extrema simplicidade foram fatores que fizeram da medicina ibérica uma terapêutica muitas vezes preterida, com relação à medicina popular”.

Com a vida da família Real para o Brasil, houve a implantação de faculdades de medicina. Dessa forma, o século XIX marca para a medicina popular um futuro menos nobre. A medicina universitária decreta, a partir de então, uma verdadeira “guerra santa” contra a medicina popular. A terapêutica popular passa, então, a ser taxada de charlatanismo e caso de polícia. 

Ainda segundo Paula, a medicina universitária vai se impor realmente no Brasil somente a partir do final do século XIX e início do século XX, com a criação do Instituto Butantã, o de bacteriologia e pelos resultados no diagnóstico de patologias tropicais. O saneamento e o tratamento das endemias realizados no Rio de Janeiro, no início do século XX, pelos sanitaristas Oswaldo Cruz e Vital Brasil, serão um marco na legitimação da terapêutica universitária como hegemônica.

A partir de então, o status da medicina universitária voa para cima tal qual um foguete. Isto é um ponto quase inquestionável. Mas, será que favoreceu toda a sociedade? É aí que mora a questão maior: a ciência médica aportou-se nos pontos urbanizados e de grande concentração populacional. Os rincões menos povoados ficaram a ver navios. Mas por que isso se sucedeu?

Como secretário de saúde numa pequena cidade do interior de Minas, eu tinha dificuldades em contratar médicos, mesmo com altos salários, e ficava a me perguntar: por que os médicos resistem tanto a vir para uma pequena cidade? E não obtinha respostas plausíveis. Anos mais tarde, o famoso médico Adib Jatene, num programa de televisão, respondeu a esta questão de forma muito clara. Para ele, os médicos só querem trabalhar onde há grandes centros de diagnósticos. Daí, a dificuldade em enfrentar pequenas cidades, que são desprovidas desses centros. Numa palavra, o sujeito forma-se médico, mas não tem formação suficiente para medicar sem auxílio daqueles diagnósticos feitos em laboratórios e outros centros de saúde.

A partir daquela entrevista do médico Jatene, percebi, então, o motivo da predileção dos médicos em ficarem em grandes centros urbanos, mesmo tendo uma competição maior na profissão com seus pares. A propósito, um deputado do Pará, em discurso recente na Câmara dos Deputados, disse que há prefeitos lá no Estado dele que oferecem 20 mil reais por mês ao médico e ele diz não; oferecem 30 mil reais e ele diz não... Para pensar em ir para lá, há que se oferecer 40 mil reais mensais ou até mais do que isso. Uma situação totalmente complicada para o governante, já que em muitos desses municípios, a principal fonte de arrecadação financeira é o Fundo de Participação dos Municípios – FPM.

Quando a Presidente Dilma, no auge das manifestações de rua, lançou o programa “Mais médicos”, houve uma gritaria geral no reino das ciências médicas. Tarefa ousada do governo central em enfrentar os “homens de branco”. Um governante não pode só fingir que governa, há que ter em mente o bem-estar da população e enfrentar certos corporativismos nefastos. Assim, a roseira dos médicos começou a balançar. Como represália, os médicos fizeram até passeatas. Os Conselhos Regionais de Medicina – CRMs, que são muito vagarosos na punição de médicos por acometimento de erros, alardearam, rapidamente, que serão severos com os médicos estrangeiros. Nessa disputa, está bem desenhado o caráter dos médicos. Querem o poder pelo poder. O juramento de Hipócrates é apenas um detalhe na vida desses senhores.

Falar mal de médicos em público é coisa rara. Quase todo mundo tem medo de médico. Eles detêm o discurso de autoridade na área da saúde. São os que atestam a vida e a morte. Assim, o médico não pensa que é Deus... Ele tem certeza disso. Essa visão de mundo do médico é aprovada por uma população que os trata como doutores, sem eles terem feito doutorado e ,também, os bajula excessivamente.

A vinda de médicos estrangeiros não garante perda de status para os médicos brasileiros. Contudo, esse fator pode deixá-los com menos força de barganha no sistema de saúde do país. E, certamente, é isso que eles temem. Mas, pode ser uma concorrência benéfica para a visão de mundo dos médicos brasileiros. Noutras palavras, os médicos formados em Cuba saem da faculdade para enfrentar uma realidade desprovida da parafernália eletrônica de diagnósticos que existem aqui no Brasil. Talvez, o CRM e o Ministério da Educação atentem mais para o fato da dependência eletrônica relativa aos diagnósticos na formação do médico aqui em nosso país.

Nesse embate entre governo e médicos, apareceu uma infeliz, que se denomina jornalista lá no Rio Grande do Norte, comparando as médicas vindas de Cuba a empregadas domésticas. Se ela tivesse seguido a cartilha jornalística e lido sobre a história da medicina, pelo menos, não cometeria em rede social tamanha barbaridade. Embora ela tenha pedido desculpas posteriormente, ficou a marca de uma sociedade que concebe o médico como alto, branco e aristocrático. Mas esse fator é mesmo realidade no Brasil. Nas piores faculdades de medicina, o valor da mensalidade é sempre um acinte à maioria do povo brasileiro. Daí, a seleção das pessoas aristocráticas para serem médicas.

Para um país de dimensão continental, há necessidade de uma medicina mais próxima do cidadão, ainda que seja nos confins da Amazônia. Se os médicos brasileiros resistem a enfrentar essa questão; se há possibilidade de trazer médicos de outros países dispostos a se embrenharem sertão afora; o caminho da equidade na saúde estará mais no horizonte da população menos favorecida pela terapêutica acadêmica. Avante!

Luiz Fernando da Silva


6 comentários:

  1. Não quero generalizar mas a grande maioria dos nossos médicos aqui no Brasil, exercem a medicina pensando em se dar bem, em engordar a conta bancária, esquecendo o juramento de Hipócrates. Sequer lembram que estão lidando com vidas humanas, com o seu próximo. Então que venham os médicos cubanos, quem sabe eles possam ensinar aos nossos médicos que exercer a medicina é acima de tudo um ato de amor!

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  2. Sim Tina! Tentei nesse artigo demonstrar que há um mercantilismo puro e simples na nobre profissão de médico aqui no Brasil. Se o sujeito quer fica rico em pouco tempo, é só fazer medicina. Coisa medonha!

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  3. Caro Luiz Fernando,
    As informações apresentadas aqui são as mesmas veiculadas pela grande mídia brasileira, porém, alguns "detalhes" deixaram de ser expostos. Acho que é muito válido apresentar o outro lado da história. Pois bem, vamos aos fatos..
    As prefeituras de cidadezinhas do interior oferecem salários altos? Sim, oferecem, então por que não dispõem de tais profissionais?
    As prefeituras que oferecem salários extremamentes altos geralmente honram apenas o primeiro mês, as vezes o segundo, e atrasam ou simplesmente não pagam os meses seguintes. Em uma média aritmética de um atraso de quatro meses, o salário real cai para 25%. Como não existem contratos formais, garantias, direitos trabalhistas, fica tudo por isso mesmo.
    Além disso, falta infra-estrutura. Não estamos falando de ressonância magnética ou medicina nuclear, e sim de um ultrassom para fazer pré-natal, exames de sangue e raio-x para diagnosticar pneumonia, remédios básicos para tratá-la e, o mais importante, outros profissionais da área de saúde. Médico não trabalha sozinho.
    Há dez anos a classe médica tenta sanar essa falta de profissionais no interior, o que é bastante simples, basta a criação de uma carreira de estado, como existe no judiciário e investimentos em infraestrutura básica.
    Porém, após dez anos, a solução subitamente emergencial apresentada pelo governo, segundo os fatos, foi a importação imediata de médicos estrangeiros, cubanos ou não, para suprir a carência destes profissionais. A questão é: médicos que sequer comprovaram sua aptidão a exercer a medicina resolverão o problema de um Sistema de Saúde falido? Ilusão..
    Porém quem não depende do SUS acredita que, PARA os mais humildes, que dependem exclusivamente do SUS, qualquer médico (mesmo ruim) serve.
    Por fim, não se trata dos salários ou de ser mercenário, como é dito por aí. Esse estereótipo não condiz com a realidade atual, pois há muitos profissionais dispostos a trabalhar, e MUITO, para salvar vidas. É justo que sejam bem remunerados, assim como deveriam ser os professores, policiais e tantos outros profissionais. Se trata de arcar com a responsabilidade de perder vidas por falta de medicação básica ou de leitos para internação, coisas que estão além da boa vontade de qualquer profissional, afinal, por mais competente que um médico seja, mágica ele não faz!

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  4. Olá Luisa! Obrigado pelo comentário.
    Como eu não sabia que você tinha também postado aqui a sua observação, respondi, antes, ao comentário, lá no e-mail do seu pai e amigo José Francisco.
    Muito bom o seu comentário! Afinal, urdes sobre uma área que lhe é familiar.
    Contudo, em que pese o seu denso comentário, há, em certa medida, a reprodução das falas dos médicos, dos presidentes de empresas médicas e dos presidentes dos CRMs, nesses dias quentes de embate entre o governo central e a medicina no Brasil.
    A questão do caos na medicina no Brasil há que ser enfrentada. O paradigma de atuação dos médicos deve ser mudado. Como futura médica, você está também inserida nesse contexto. Daí, a defesa da atuação de um lado da complicada questão.
    Adib Jatene foi muito feliz ao dizer que, apesar das prefeituras oferecerem altos salários, os médicos não se dispõem a irem para uma cidade pequena porque não há infra-estrutura em aparelhagens para fazer diagnóticos. Algo tão caro aos médicos.
    Não defendo Dilma e Cia. Não defendo a política do Estado em relação à medicina. Mas, tampouco defendo os médicos na forma de atuação contemporânea. O meu artigo é a minha visão de mundo acerca da medicina no Brasil. E a visão que adquiri após três anos em convivência com médicos, como Secretário Municipal de Saúde em São Vicente de Minas e em Brazópolis.
    Boa sorte para você na brilhante carreira que escolhera. Como os médicos brasileiros, vis-à-vis ao seu comentário, também não estão satisfeitos, o embate com Estado deve se constituir com algo que venha melhorar ainda mais a medicina no país. Pois, ambos são gigantes!

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  5. Parabéns Pela postagem muito bom mesmo! E outra não sabia que você também já carregou essa cruz que é trabalhar no Sistema Único de Saúde! Guerreiro mesmo esse meu amigo! Também noto esse fato por onde passo, a tal soberania dos donos ou quase donos das nossas vidas, pois aqui já tive que confrontar algum pela atual situação da saúde publica da qual o descaso afetou também meus familiares! Pois bem, penso que a culpa não é tão somente dos tais médicos uma vez que em toda cesta que a um tomate podre se não eliminado contaminam a maioria, sendo assim nesse meio como o texto relata essa precariedade vem desde o início dessa triste história de país! Os governos também nunca se atentaram para a área de forma atenciosa e maciça uma vez que os mesmo precisam da doença, como também da pobreza para se sustentarem nos cargos eternamente (enquanto viverem) sendo assim eles tem argumentos para campanha propostas na ponta da língua e povo de joelhos no chão, já que dependemos dessa escória! Acho que a forma no momento é essa mesmo trazer de fora se aqui não tem, e mudar em poucas décadas esse quadro, para que, no futuro podermos enviar ao invés de receber esses profissionais! Agora que a opção dos profissionais cubanos e a forma que são contratados! Não podendo optar e ter que submeter a quaisquer ordens do Herdeiro de Che Guevara e Fidel não concordo! Negar a Situação de Cuba é mesma coisa de dizer que não houve o Holocausto ou não existiu a segunda Guerra! Ou Elvis não morreu, infelizmente sim!

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  6. Grande amigo Jonas! Obrigado pelo comentário! Olhe, também não coaduno com a política existente em Cuba. Mas, como país de Terceiro Mundo, uma pequena ilhota pobre no Caribe conseguiu se tornar famosa pelos cuidados médicos. Outro feito memorável foi a erradicação do analfabetismo. São feitos grandiosos numa região pobre. Contudo, a falta de democracia nos moldes ocidentais, a falta de liberdade e o caminho errado trilhado após o fim da URSS (de onde obtinha farta ajuda), fez (e faz) com que o país mergulhasse numa infindável crise econômica. Outra coisa danosa para eles é o bloqueio econômico de mais de 50 anos feito pelos EUA. Embora haja ensaios de liberalização, principalmente na economia, a coisa ainda continua muito precária lá. A turma de Fidel ainda continuam no poder. Pior para o povo cubano!

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